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“A nova Lei do Gás busca estabelecer um mercado mais aberto, dinâmico e competitivo, que consiga impulsionar o desenvolvimento de projetos e reduzir o preço do gás natural”

Pablo Ferragut, responsável pela área de Gestão Sustentável e Gás Natural de ARPEL

O mercado de gás natural na América Latina possui um baralho que oferece um imenso potencial: grandes recursos, reservas naturais e claras oportunidades de expansão. Esta parte da matriz é chave tanto na transição energética quanto no desenvolvimento econômico da região. Na consecução desses objetivos deverá enfrentar sérios desafios, como a melhoria de sua rede de infraestruturas e o impacto da COVID-19. Pablo Ferragut, responsável pela área de Gestão Sustentável e Gás Natural da ARPEL, conversa sobre estas questões em nossa entrevista.

  • Conte-nos sobre a ARPEL, sua origem e participação no setor de petróleo, gás e biocombustíveis na América Latina.

ARPEL é a Associação Regional de Empresas do Setor de Petróleo, Gás e Biocombustíveis na América Latina e no Caribe. Sua fundação aconteceu em 1965 graças a 8 empresas nacionais de petróleo, para ser um meio de cooperação na indústria no impulsionamento da melhoria contínua. Na atualidade, nossa associação conta com as 25 empresas mais representativas do setor, com operações na maioria dos países da região. Encontram-se tanto empresas nacionais quanto operadoras privadas e prestadoras de serviços. Assim mesmo, contamos com uma ampla rede institucional de parceria, que abrange tanto instituições nacionais do setor quanto os principais órgãos internacionais que trabalham em energia, clima e sustentabilidade.

Finalmente, também gostaria de mencionar que nosso mandato fundacional está cada vez mais vigente, pois o tamanho e a complexidade dos desafios enfrentados pela indústria da energia tornam imperiosa essa cooperação entre as companhias do setor e ainda, como é lógico, com governos, órgãos internacionais e a sociedade civil.

  • Você pertence ao comitê de Gás e Energia, fonte de grande riqueza na região. Quais são as reservas potenciais mais importantes de gás na América Latina?

ARPEL inaugurou seu Comitê de Gás e Energia em 2014, como uma resposta à crescente necessidade das empresas de trabalhar nessa temática. Hoje, o gás natural está no foco das discussões sobre transição energética e demonstrou grande crescimento nos últimos anos.

Do ponto de vista das reservas, a Venezuela tem o maior nível com 222 tcf (trillion cubic feet). Trata-se de um dos países com maiores reservas do mundo, no nível da Arábia Saudita ou dos Emirados Árabes, estando somente por trás dos Estados Unidos, China, Rússia, Irã, Qatar e Turquemenistão. Mas não é o país com maior desenvolvimento de seus recursos de gás.

O Brasil e a Argentina a seguem com cerca de 13 tcf e ambos os países mostraram muito dinamismo no desenvolvimento de suas reservas nos últimos anos. O Brasil, principalmente devido ao grande desenvolvimento de campos offshore na região do pré-sal, e a Argentina, pelos investimentos realizados nas jazidas não convencionais, sobretudo em Vaca Morta.

Um degrau abaixo, com 10 tcf, podemos encontrar Trindade e Tobago, e Peru. Os dois países exibem um interessante desenvolvimento de seus recursos e muito potencial. Além disso, possuem uma característica em comum: neles se encontram os dois terminais de liquefação de GNL a grande escala existentes na região, sendo ambos importantes jogadores no mercado internacional de GNL.

Um pouco mais atrás está Bolívia, com 7,5 tcf, embora seja um dos principais produtores. Ela é um importante fornecedor de gás para Brasil e Argentina, países aos quais se encontra conectada através de gasodutos. Segue a Colômbia, com 3,6 tcf e um mercado interno amadurecido e desenvolvido.

Por último, gostaria de mencionar o México, como grande consumidor de gás natural e com um nível de reservas de 6,3 tcf.

  • Quanto ao sistema de infraestruturas de gás. No seu entender, quais seriam as mais importantes para a região latino-americana?

Na cadeia de valor do gás natural, em função das características próprias do gás e de seus usos, a infraestrutura é um aspecto altamente relevante na conexão das jazidas com os consumidores.

Em primeiro lugar, quero salientar a infraestrutura vinculada ao GNL. Hoje em dia, existem terminais de regaseificação na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Panamá, República Dominicana, Porto Rico, Jamaica e México. Assim mesmo, há projetos sendo executados ou em planificação no Brasil, Colômbia, El Salvador e Nicarágua. Em geral, estamos falando de grandes terminais de regaseificação, em sua maioria FSRUs, com capacidades send-out entre 10 e 15 milhões de m3 e armazenamento de 150.000 m3.

Continuando com o GNL e como mencionei na resposta anterior, há dois terminais de liquefação: Atlantic LNG, em Trindade e Tobago, e Peru LNG. O primeiro iniciou suas operações em 1999, e atualmente tem capacidade anual de liquefação de 15 milhões de toneladas métricas. Além disso, este país é um dos principais produtores mundiais de amoníaco e metanol, dois produtos com boas perspectivas no mercado energético.

Por sua vez, Peru LNG começou suas operações de liquefação em 2010 e em 2019 exportou 8.300 milhões de metros cúbicos de gás natural, cerca de 40% da produção peruana. Quanto aos novos terminais de liquefação, existem projetos no México e na Argentina.

Também é importante mencionar os gasodutos internacionais e as redes de dutos em cada país. Quanto aos primeiros, podemos dizer que há boa interconexão no Cone Sul, já que a Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Uruguai estão unidos por gasodutos. No tanto, existem muitas oportunidades para otimizar seu uso através de maior integração regional.

O México importa mais da metade de seu consumo dos Estados Unidos via gasodutos. Também existe um duto que une à Colômbia com à Venezuela.

Quanto às redes nacionais de dutos, há determinados países com bom desenvolvimento relativo, como a Argentina, o que se reflete na alta percentagem de consumo residencial na Bolívia, Chile, Colômbia ou o próprio Trindade e Tobago.

No caso do México, existe grande infraestrutura de dutos, embora não exista um desenvolvimento tão grande das redes de distribuição. Contudo, no caso do Brasil, apesar de ter bom desenvolvimento em quase toda a costa atlântica, é um país muito extenso e com grandes oportunidades de investimento em infraestrutura.

No Peru, a infraestrutura de distribuição está concentrada na capital, embora os vários esforços de expansão para outras regiões através do programa de massificação do uso do gás natural.

Outros países, por exemplo na América Central ou no Caribe, não possuem recursos de gás em seu território, e o driver principal para desenvolvimento de projetos é a instalação de usinas de geração térmica, que permitem alavancar os investimentos em regaseificação e substituir importações de derivados do petróleo.

Em resumo, a América Latina tem grandes reservas de gás natural, assim como oportunidades para expandir os mercados, mas é necessário maior desenvolvimento de infraestrutura, que permita valorizar esses recursos, gerar riqueza e permita reduzir de maneira efetiva as emissões de gases de efeito estufa (GEE) tanto na região quanto no abastecimento de outros mercados.

  • Pode comentar alguns dos projetos estratégicos que estejam em andamento ou planificação e que representem um impacto para a região?

Do ponto de vista do upstream, acredito que a jazida de Vaca Muerta já foi uma transformação para os mercados do Cone Sul e continuará assim. Assim mesmo, um maior aproveitamento do gás natural associado do pré-sal brasileiro pode ser um game-changer para a região. Ainda, a descoberta da mega jazida petroleira na Guiana, hoje em fase de produção, e mais recentemente as descobertas realizadas no Suriname, podem originar o desenvolvimento do gás natural nesses países no médio prazo.

Depois, os terminais de regaseificação de GNL, em particular GNL Pacífico, que estão em licitação para serem desenvolvidos no Porto de Buenaventura, na costa Pacífico da Colômbia, e com estimativa de entrada em operação em meados desta década. Por sua vez, estão os terminais de GNL que serão desenvolvidos na América Central e no Caribe, pois representariam a incorporação de gás natural em países em que hoje não existe infraestrutura e seriam projetos transformadores em cada um deles.

Quanto ao Brasil, não somente os novos terminais de GNL, mas o que está em desenvolvimento em Porto do Açu e o recentemente inaugurado no Estado de Sergipe, e outros que possam ser instalados no futuro. Contudo, há outros dois aspectos que podem ser muito transformadores e impactar nos mercados regionais.

Por um lado, a Nova Lei do Gás, que busca definir um mercado mais aberto, dinâmico e competitivo, e que espera possa impulsionar o andamento de projetos e reduzir o preço do gás natural, encorajando consequentemente maior evolução industrial. Além disso, o desenvolvimento de infraestrutura para a obtenção de um maior aproveitamento dos recursos de gás do pré-sal, principalmente do gás associado ao petróleo, que hoje é reinjetado e que pode incrementar a oferta nacional de gás nesse país.

Finalmente, acredito na existência de um grande potencial para o progresso de projetos no transporte terrestre e marítimo, e já há países trabalhando nesta possibilidade.

  • Na sua opinião, que países da região apresentam maior desenvolvimento em matéria de energia de gás e quais maior potencial de crescimento?

Há grande potencial no desenvolvimento de negócios em toda a região, embora as oportunidades sejam bem diferentes em cada país, pois respondem a diferentes drivers, como mencionado nas respostas acima.

  • Para o setor do gás, que indústrias/atividades representam atualmente a maior demanda?

O gás natural é um produto muito versátil, que permite uma grande flexibilidade. Pode ser utilizado como combustível na geração elétrica, na indústria, no transporte ou em usos residenciais, como na elaboração de alimentos, água quente ou aquecimento. Por sua vez, seus líquidos podem ser utilizados como matéria-prima petroquímica ou para a produção de GLP.

Apesar de que os usos principais dependem muito de cada país, a geração elétrica é o mercado mais importante e o gás natural representa hoje 28% da matriz de geração elétrica da região.

Este combustível não é somente mais eficiente e limpo do que o carvão ou os derivados do petróleo, mas também oferece grande flexibilidade aos mercados elétricos, graças a que as usinas alimentadas a gás podem entrar rapidamente em operação e enviar energia. Esta é uma característica muito desejada nas matrizes, algo que esperamos possam incorporar fortemente as energias renováveis não administráveis (eólica, solar e outras) nos próximos anos. Isso o transforma em um grande complemento para essas fontes e tecnologias energéticas, porque brinda segurança, escalabilidade, estabilidade e capacidade de reação para o operador do sistema.

Sem dúvida, dentro dos mercados de grandes consumidores, a indústria é também um forte demandante de gás natural.

Em países como a Argentina, o consumo residencial é outro componente relevante e em outros países ricos em recursos, como a Bolívia ou Peru, estão realizando grandes esforços para impulsionar seu consumo.

Por último, gostaria de fazer uma menção ao transporte que, embora não tenha um grande desenvolvimento, exceto no relativo ao GNC em alguns países como a Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia ou Brasil, acredito na existência de grandes oportunidades para o desenvolvimento desse mercado que permitirá reduzir emissões e melhorar a qualidade do ar.

  • De que maneira o setor foi afetado pela pandemia? Existiram grandes variações relativas à produção e à demanda?

O impacto depende muito dos mercados de consumo. No entanto, é possível dizer que o gás natural demonstrou ser muito mais resiliente do que os derivados do petróleo, precisamente porque seu consumo não está muito associado ao transporte, ao comércio internacional ou à aviação, que sem dúvida foram eles os mercados mais afetados pelo fechamento das economias como consequência da pandemia da COVID-19.

A nível global, estima-se para 2020 uma redução no consumo de gás natural de 3% respeito de 2019, principalmente pela pandemia e suas consequências econômicas, mas há boas expectativas de recuperação para 2021 e que continue o caminho de crescimento de longo prazo.

  • Quais são as principais medidas que as empresas de produção e transporte adotaram para continuar com suas operações?

Foram realmente tempos desafiadores para todos e a necessidade de manter as operações das empresas de petróleo e gás obrigou a uma aprendizagem muito acelerada, para conseguir gerenciar de maneira adequada os riscos, cuidar dos trabalhadores e continuar abastecendo a população.

As próprias medidas não diferem do realizado em outros setores. Isto é, ir em direção ao trabalho remoto nos postos que assim o permitiram, reduzir os plantões e o contato, mudar o regime de turnos, usar equipamentos de proteção pessoal, testagens aos trabalhadores, estabelecer protocolos e, por outro lado, também tomar ações para oferecer contenção e apoio psicológico às pessoas.

Na ARPEL, apoiamos este processo gerando instâncias de troca virtual entre os profissionais de segurança e saúde das empresas de petróleo e gás da região, nas quais foram apresentados seus desafios, dúvidas, práticas, avanços e o que foi útil como âmbito de cooperação para a resolução de problemas concretos.

Realizamos 17 encontros virtuais totais de intercâmbio entre março e agosto, com uma frequência semanal. Esses encontros contaram com a participação de profissionais de mais de 60 empresas e de organizações provenientes de vinte países.

  • Muitos países anunciaram importantes injeções de investimento em diversos setores em busca da reativação econômica. No seu entender, que tipo de investimentos seriam chave para o setor do gás?

Em geral, os investimentos para impulsionar a recuperação acontecem em obras de infraestrutura e, como mencionado acima, a cadeia de valor do gás está muito vinculada ao desenvolvimento de grandes obras como gasodutos, redes de distribuição e terminais de GNL.

Acredito na existência de oportunidades em todos os países e não só de grandes obras, mas também em poder encorajar mudanças com projetos menores e escaláveis, como no setor do transporte, tanto terrestre quanto fluvial e marítimo, que poderiam proporcionar dinamismo à economia e novamente contribuir para reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

  • O gás natural se apresenta como elemento chave na transição energética. Em que ponto se encontra a região nesta questão?

Hoje em dia, o gás natural representa a quarta parte da matriz energética primária e um pouco mais da matriz de geração elétrica da região em seu conjunto. Logicamente, o panorama é muito heterogêneo porque há países, como a Argentina, em que 50% da matriz energética é gás natural até países em que diretamente não é utilizado esta energia, porque não possuem o recurso e não desenvolveram a infraestrutura.

A região é abundante neste recurso e, além disso, é uma tecnologia muito amadurecida e de eficácia comprovada, que a torna uma opção atraente e custo-efetiva para reduzir emissões no curto prazo e gerar desenvolvimento ao mesmo tempo, enquanto amadurecem outras tecnologias energéticas. Assim mesmo, complementa-se perfeitamente com as energias renováveis não gerenciáveis (solar, eólica, etc.) e com outras muito promissórias, como o hidrogênio e o biometano.

Quanto ao nível de avanço da transição energética, há países que alcançaram uma grande transformação de seu sistema elétrico alcançando quase 100% de renovabilidade na geração: Uruguai, Costa Rica e Paraguai. Enquanto isso, há outros países que estão conseguindo avanços na descarbonização, como o Brasil, Chile, Colômbia, Guatemala e Panamá. A América Latina é a região do mundo com maior proporção de hidroeletricidade na matriz elétrica, porque isso lhe confere maior perfil de renovabilidade. Além disso, vários países foram bem-sucedidos na incorporação de energias renováveis não convencionais. No entanto, o setor energético é muito mais amplo do que o setor elétrico, e existem muitos desafios em outros setores. Por outro lado, na região há recursos de gás natural suficientes para contribuir com a descarbonização em outras partes do mundo.

Acredito que, no relativo à descarbonização, a tendência é clara em todo o mundo e na América Latina também. O importante é a procura por soluções custo-efetivas, que considerem todas as tecnologias disponíveis na hora de estabelecer políticas e esforços de descarbonização. Nesse sentido, o gás natural se apresenta como uma ótima alternativa para impulsionar a descarbonização dos diferentes usos energéticos, em particular a geração elétrica, a indústria e o transporte.

Em 2020, a ARPEL emitiu um documento, um livro branco, sobre transições energéticas e que detalha o papel dos hidrocarbonetos na transição energética latino-americana. Pode ser descarregado do site web da Associação.

  • E para finalizar, olhando para o futuro, que tendências em aplicações /usos tanto da indústria do gás quanto do biocombustível apresentam maiores oportunidades para impulsionar a evolução do setor?

Nesse sentido, acredito que há usos muito tradicionais, como a geração elétrica ou os processos industriais que continuam apresentando ótimas oportunidades, porque permitem gerar impactos bem positivos quanto à redução de emissões e à eficiência de forma custo-efetiva. No entanto, considero que hoje em dia o transporte de carga apresenta grandes oportunidades para o desenvolvimento de projetos em nossa região.

Também o avanço tecnológico permitirá reduzir as emissões de metano e CO2 em toda a cadeia de valor e no ciclo de vida do gás natural, através de tecnologias como coleta, uso e armazenamento de carbono (CCUS) e dos ganhos de eficiência que sejam alcançados em todos os processos.

Por sua vez, o gás natural apresenta ótimas opções de complementaridade com o hidrogênio (tanto azul quanto verde) e o biometano, porque acredito que observaremos esses mundos muito mais integrados no médio prazo.

Pablo Ferragut é economista, especialista em energia, clima, transições energéticas e sustentabilidade corporativa, com mais de 10 anos de experiência no setor energético e a maior parte deles em trabalhos de cooperação internacional na América Latina e no Caribe.

Atualmente, atua como gerente de projetos na ARPEL (Associação Regional de Empresas do Setor de Petróleo, Gás e Biocombustíveis na América Latina e no Caribe), estando a cargo da área de Gestão Sustentável e de Gás Natural.

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